A data de 12 de julho de 1998 está gravada na memória de todo brasileiro, não por um título, mas por um trauma coletivo. O palco era o Stade de France; o adversário, a anfitriã França de Zinedine Zidane. Mas o verdadeiro drama aconteceu horas antes do apito inicial, nos bastidores do Castelo de Lesigny. O colapso de Ronaldo Luís Nazário de Lima, o "Fenômeno", transformou-se no maior mistério da história das Copas do Mundo.
Por décadas, teorias da conspiração — que iam de uma "venda" do resultado para a Nike até o uso de substâncias dopantes — alimentaram o imaginário popular. No entanto, o avanço da medicina esportiva e o acesso a depoimentos de médicos envolvidos começaram a desenhar um cenário muito mais clínico e aterrorizante do que qualquer trama de espionagem.
O Colapso no Quarto 290: O que Aconteceu?
Eram aproximadamente 14h em Paris quando o silêncio da concentração brasileira foi quebrado pelos gritos de Roberto Carlos. No quarto que dividia com Ronaldo, o lateral-esquerdo presenciou uma cena chocante: o melhor jogador do mundo estava estirado, sofrendo o que pareciam ser convulsões, com a boca espumando e o corpo retorcido.
O pânico se instalou. Edmundo foi um dos primeiros a chegar e ajudou a segurar a língua de Ronaldo para evitar que ele se asfixiasse. O Dr. Lidio Toledo e o Dr. Joaquim da Mata, médicos da CBF na época, foram acionados às pressas. O diagnóstico inicial, feito no calor do momento, foi de uma crise convulsiva.
A Transferência para a Clínica des Lilas
Ronaldo foi levado inconsciente para a Clínica des Lilas, em Paris, onde passou por uma bateria rigorosa de exames. É aqui que os "documentos médicos" começam a divergir das interpretações populares. O jogador foi submetido a:
Eletroencefalograma (EEG): Para medir a atividade elétrica do cérebro.
Tomografia Computadorizada: Para descartar lesões estruturais ou hemorragias.
Os resultados foram surpreendentes: normais. Não havia sinais de atividade epiléptica residual nem danos neurológicos.
A Reviravolta Médica: Convulsão ou Problema Cardíaco?
Por anos, a versão oficial foi a de uma convulsão ligada ao estresse (o famoso "estresse emocional pré-competitivo"). Entretanto, anos mais tarde, o cardiologista italiano Bruno Carù, ex-presidente da Sociedade Italiana de Cardiologia Esportiva, analisou os documentos e relatórios médicos da época e apresentou uma tese que mudou o entendimento do caso.
Segundo Carù, Ronaldo não sofreu uma crise epiléptica, mas sim um episódio cardíaco grave.
A Hipótese do Nó Sinusal
O médico italiano sustenta que Ronaldo teve uma síncope vasovagal ou, mais especificamente, um problema no nó sinusal. Ao se deitar, o pescoço de Ronaldo teria ficado em uma posição que comprimiu o glomo carotídeo, um sensor de pressão arterial. Isso teria causado uma queda drástica na frequência cardíaca e na pressão arterial, levando ao desmaio e às contrações musculares que foram confundidas com convulsões.
"Ronaldo estava deitado e, ao mover o pescoço, o corpo interpretou que a pressão estava alta demais. O coração desacelerou tanto que ele quase parou", afirmou Carù em entrevistas posteriores.
Se essa tese estiver correta, Ronaldo entrou em campo na final da Copa do Mundo poucas horas após ter sobrevivido a um quase colapso cardíaco, o que torna sua presença no gramado ainda mais perigosa do que se imaginava.
A Pressão do Patrocinador e a Escalação de Última Hora
Um dos pontos centrais da polêmica é a famosa "folha de escalação". Cerca de uma hora antes do jogo, a lista oficial da FIFA foi distribuída aos jornalistas com o nome de Edmundo no lugar de Ronaldo. Minutos depois, uma nova lista apareceu com o número 9 de volta ao time titular.
Os documentos médicos diziam que Ronaldo estava "apto", mas os relatos de bastidores mostram um jogador pálido, com o olhar distante e claramente abalado. Zagallo, o técnico na época, enfrentou um dilema ético e técnico:
Ouvir o departamento médico que, após os exames na clínica, não encontrou impedimentos físicos.
Ouvir o próprio jogador, que chegou ao estádio dizendo: "Eu quero jogar, eu estou bem".
A decisão de Zagallo foi baseada no laudo médico da Clínica des Lilas. Se o hospital disse que o atleta não tinha nada, como um treinador poderia barrar o Fenômeno em uma final de Copa?
O Impacto do Medicamento: O Mistério do Xylocaina
Outra teoria fundamentada em registros médicos da época envolve o tratamento de uma infiltração que Ronaldo estaria fazendo no joelho. O jogador sofria de tendinite crônica e, segundo alguns relatos, teria recebido uma dose de Xylocaina (um anestésico local).
Especialistas sugerem que, se o medicamento tivesse entrado acidentalmente na corrente sanguínea (via intravascular), ele poderia causar efeitos colaterais neurológicos idênticos a uma crise convulsiva. Embora a equipe médica da CBF sempre tenha negado que qualquer substância tenha causado o episódio, essa permanece como uma das explicações clínicas mais aceitas para o que aconteceu no quarto 290.
O Legado de 98 para a Medicina Esportiva
O caso Ronaldo mudou a forma como as seleções lidam com a saúde mental e física dos atletas. Hoje, seria impensável um jogador que sofreu perda de consciência e convulsões entrar em campo 40 minutos após receber alta hospitalar.
Os documentos médicos de 1998 revelam uma lacuna na época: a falta de acompanhamento psicológico. O "fenômeno" não era apenas físico; a pressão de carregar as expectativas de 160 milhões de brasileiros, somada a contratos publicitários milionários, criou o que os médicos chamam de somatização.
Fatos que os documentos confirmam:
Frequência Cardíaca: No momento do atendimento na clínica, os batimentos de Ronaldo estavam estáveis, mas ele apresentava uma bradicardia severa logo após o episódio no hotel.
Ausência de Drogas: Os exames antidoping realizados após a final não acusaram nenhuma substância ilícita, o que descarta a teoria de "doping acobertado".
Estado de Choque: O registro clínico pós-jogo descreve um atleta em estado de exaustão física e psicológica extrema.
O Fenômeno Humano
A verdade sobre 1998 não está em uma conspiração de venda de resultados, mas na fragilidade da máquina humana. Os documentos médicos mostram que, tecnicamente, Ronaldo não tinha uma doença, mas seu corpo emitiu um sinal de socorro. O fato de ele ter entrado em campo, mesmo sem condições competitivas, demonstra a força — e talvez a imprudência — que define os grandes ícones do esporte.
Quatro anos depois, em 2002, o mundo veria a redenção. Mas o mistério de 1998 permanece como um lembrete de que, por trás do "Fenômeno", existia um jovem de 21 anos enfrentando o limite entre a glória eterna e o colapso vital.

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